sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Momento Mais Sombrio

A passos rápidos, subíamos uma escadaria de pedra, em meio a barracos de madeira e pequenas casas de alvenaria. Uma torrente de lama descia pelos barrancos, e pelo caminho víamos pessoas, às vezes famílias, correndo na direção contrária. Os ventos faziam os galhos das árvores tremerem. Os trovões aumentavam em freqüência. Os estrondos, cada vez mais próximos, faziam a terra tremer. A tempestade era tão forte era impossível prosseguirmos sem protegermos nossos olhos. Acima, as nuvens formavam uma massa negra e instável, sempre se alterando e se distorcendo. Talvez fosse impressão minha, mas a cada relâmpago, eu percebia um tom avermelhado nas nuvens acima de nós.
Eu nunca vira uma noite tão negra como aquela.
Era impossível voar naquelas condições. Por isso, eu tive de abrir um portal da Mansão Sabina para o morro de Cerro-corá. Conforme subíamos pelas ruelas e escadarias, eu via sinais de desespero e destruição. Casebres ruíam conforme o chão sob eles era arrastado pelas corredeiras de lama, e pelo menos uma árvore tombara sobre uma casa. Eu podia sentir que o pior ainda estava por vir, e que tragédias maiores ainda estavam por ocorrer. Continuamos a correr, embora a lama, os ventos e a chuva praticamente reduzissem nossa velocidade à metade. Os relâmpagos freqüentes iluminavam o caminho, mas os trovões que os acompanhavam quase nos ensurdeciam. Foi então que um som em particular ecoou pelo morro, transportado pelas ruelas da favela, me forçou a parar, como se minhas pernas congelassem. O urro do tigre se ergueu mais alto que qualquer trovão. Parei e fitei para a negritude abaixo, por onde viemos. Os relâmpagos iluminaram o caminho, não revelando nenhuma forma. Os demais pararam para ver o que tinha acontecido, mas pareciam incapazes de ouvir aquele urro. “Mestre Nicodemus!”, chamou-me Asphael. Respirando fundo, voltei a correr rumo ao esconderijo do Velho. Os outros voltaram a me seguir.
O caminho então tomou a direita, após as escadarias passarem por um barranco de uns três metros de altura. À frente, alguns poucos casebres se misturavam a uma mata mais densa. Usando as memórias do vampiro como guia, corri em direção à mata, que não era muito densa. Por entre árvores espaçadas, sobre um solo rochoso e lamacento, caminhamos, até vermos luzes, vindas de mais um casebre à frente. “É aqui!”, gritei aos demais.
Não havia tempo para planejamentos, mas eu sabia que deveria haver algum serviçal de Gudrun ainda guardando o local. “Ansgar, à frente!”, pedi aos gritos. O enorme Venator correu em direção ao casebre de alvenaria, chutando a porta de entrada. Empunhando sua espada, ele entrou, e eu o segui de perto. Imediatamente, vieram tiros.
Em lados opostos da sala de entrada, dois homens armados começaram a disparar contra Ansgar. Algumas balas penetravam sua pele, mas o grito de Ansgar não foi de dor, mas um chamado para batalha. Em grande velocidade, o Venator alcançou o primeiro homem, agarrando-o com a mão esquerda. Imediatamente, o homem ardeu em chamas celestes. Ainda sob tiros do segundo vigia, Ansgar girou o corpo, arremessando o guarda em chamas contra seu companheiro. A força do Venator foi tamanha que eu jurava ouvir o som de ossos se partindo quando ambos colidiram. O primeiro desmaiou imediatamente, enquanto o segundo, caído, gritou de dor ao sentir as chamas celestes se espalharem também para o seu corpo. Ansgar avançou contra a próxima porta, arrombando-a com um encontrão. Antes que o Venator entrasse na sala seguinte, os dois guardas já estavam inconscientes. Atrás de mim, os demais membros da Falange já entravam no casebre.
Ouvi um grito desesperado quando Ansgar prosseguiu na sala seguinte, que nada mais era do que um pequeno quarto. Tiros de uma arma semi-automática vieram logo depois. Entrando no pequeno quarto, vi Ansgar avançar furiosamente contra mais um guarda, seu peito sendo atingido seguidamente por rajadas de balas. A mão esquerda de Ansgar ergueu o homem, e então o arremessou pela janela. A vidraça se partiu, e a força empregada por Ansgar era mais do que suficiente para tirar aquele homem de combate. Por fim, fitamos o último homem presente, uma forma frágil e murmurante, encolhida em um dos cantos do quarto. Seus olhos profundos nos fitavam com medo, e ele respirava ofegante. “Não”, ele murmurou, repetindo várias vezes.
“Não se preocupe!”, pediu Ansgar, se aproximando. “Viemos salva-lo!”
Os outros entravam no quarto. Ouvi mais um trovão. “Não há salvação! Eu vou morrer! É tarde demais!”, murmurou o Velho, “é tarde demais! Começará esta noite!”. E eu podia sentir algo crescer à nossa volta, algo invisível, intangível. Era como se o chão tremesse, acompanhando passos furiosos e velozes que vinham em nossa direção.
“Precisamos tira-lo daqui imediatamente!”, gritei, ouvindo os ecos da respiração do tigre, cada vez mais próximos.
Asphael se posicionou no centro do quarto. “Ao Éden, então!”. O Arcanjo estendeu a mão, seu poder fluindo pelo ambiente. Um portal começou a se formar, fazendo o próprio ar tremer. O ar parecia mais quente, mais opressivo. Eu podia sentir uma escuridão espiritual tomar o ambiente, subjugando a energia do Arcanjo. O urro do tigre ecoou, partindo vidraças e fazendo objetos de madeira racharem e trincarem. O portal desapareceu em seguida, antes mesmo que qualquer um pudesse atravessa-lo.
“TIRE-O DAÍ, ANSGAR!”, gritei.
Ansgar agarrou o braço do Velho, girando o corpo para puxa-lo para longe da parede, ao mesmo tempo se colocando entre o homem e a quina. Um estrondo se seguiu, e mal as costas do Velho se distanciaram da quina do quarto, garras de tigre atravessaram a parede, pulverizando tijolos. Num movimento rápido, o Venator protegeu velho com o próprio corpo, e as garras do tigre atingiram as costas do Celestial.
Ansgar gritou de dor, mas se pôs para frente, afastando da parede e empurrando o Velho na direção do resto do grupo. As garras do tigre rasgaram mais das paredes e, mal Samuel agarrava o Profeta e o puxava para trás do grupo, Shiva adentrou o quarto, arrebentando a coluna que sustentava a quina do quarto. O teto começou a ruir, derrubando suportes de madeira e telhas sobre nós.
Tentamos nos afastar para a parede oposta, que ainda estava em pé, a fim de escapar dos destroços, mas o tigre e Ansgar foram soterrados por telhas e tijolos. Samuel empurrou Karina e o Velho para o quarto ao lado. “TIREM ELE DAQUI!”, gritou o Sancti, sacando a espada.
O tigre, porém, emergiu dos escombros avançando. Ao seu urro, as bases das paredes começaram a rachar e se desfazer, e logo o casebre inteiro caiu. Karina abraçou o velho, jogando-se no chão com ele, enquanto uma parede de tijolos caía sobre os dois. Samuel gritou pela moça, ignorando as telhas e tijolos que caíam sobre nós. A maioria dos escombros, porém, caíam sobre o Karina e o Velho, soterrando-os mais e mais. O tigre deu alguns passos, mostrando suas presas e rosnando, enquanto nos fitava furiosamente. Sem um teto para nos proteger, a tempestade mais uma vez nos cobria. As luzes da casa se foram, sobrando apenas iluminação de relâmpagos. O tigre deu mais um passo, abrindo a bocarra e exibindo as poderosas mandíbulas.
Foi quando uma poderosa luz branca surgiu, emitida pela lâmina de Asphael .O Arcanjo deu um passo em direção ao tigre. Pela primeira vez, eu senti ansiedade em Lorde Asphael. Os olhos de ambos se encontraram. Atrás de Asphael, Samuel, Al-Malik e Lo Wang também empunhavam suas lâminas. Eu podia sentir o poder do tigre se espalhar como uma doença, como se o monstro estivesse se tornando mais forte e mais rápido. Nem ele nem meus companheiros tomavam a iniciativa, porém.
“Ajudem Karina”, murmurei a Fabrizia e Absolon, já concentrando minhas forças para participar do embate que viria.
“Eu posso ajuda-los!”, disse Absolon.
“Absolon... AGORA NÃO!”, gritei, “VÃO!”.
Absolon, a contragosto, meneou a cabeça, então segurou o braço de Fabrizia, puxando-a. Ambos correram em direção aos escombros que cobriam Karina e o Velho. Nesse instante, a atenção do tigre se voltou ao dois. Num urro poderoso, Shiva avançou contra os dois jovens. Tanto a boca do tigre como suas patas se incendiaram em Fogo Negro, brilhando num tom verde doentio.

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